
a sonia
artur tomás
Ela queria dinheiro.
"Certeza Irmão. Deus me dá tudo que eu peço. Olha isso aqui irmão. O irmão tá com uma mochila, o irmão é estudante. É inteligente. Lê o que tá escrito aqui: 'encaminhamento'. Eu pedi pra Deus e Deus me deu. Tudo que eu peço pra ele ele me dá. Olha, eu dou risada tampando assim os meus dentes. Olha esses dedos, todos machucados. Sabe o que é isso? É nóia! Eu vou ser bem sincera: todo o dinheiro que eu tenho eu gasto com nóia. E Deus me dá tudo. Eu não roubo não. Sabe o que eu faço? Eu vou no semáforo pedir. E Deus me dá tudo. Até o dinheiro pra nóia. Dia desses um irmão me deu 100 reais e eu usei tudo em nóia. É pecado né, irmão? Acho que ele tirou da comida dos filhos dele pra me dar."
Foi assim que ela se apresentou. Sorrindo escondendo os dentes podres com a mão carcomida, esboçando choros e extremamente inquieta pelo efeito da droga.
Ela agitava e mostrava um papel encardido, timbrado com o brasão da Prefeitura Municipal de L... - Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS), onde constava o nome Sueli de O... - pela caligrafia, rabiscado às pressas e com interesse burocrático. O salvo-conduto permitiria à Sueli o encaminhamento para algum dos órgãos de saúde municipais, que lhe tratariam os órgãos internos com produtos sintéticos de organizações farmacêuticas em nome da boa manutenção do organismo social.
Muito do que ela falou não era inteligível, para uma mente sã e cristãmente moldada. O Deus de Sueli dá a ela dinheiro pra droga. Mas ela tem quase certeza que isso não vem Dele, e sim do tal Antagonista. Assistentes sociais e religiosos já a procuraram. Uns oferecendo abrigo, alimento e recuperação da dependência química. Outros oferecendo a Bíblia e a possibilidade de salvação espiritual - acrescida da condenação infernal dos loucos e depravados.
Estranhos religiosos, estranhos assistentes. Tudo o que vocês lha oferecem é bom e ela precisa, diríamos. Ora, ingênuos! Vai tudo bem com a Sueli, caso não tenham notado. Ela é um fenômeno absolutamente normal, aqui em nosso urbe caótica.
Surpreendente seria alguém oferecer amor à Sueli. Sueli foge à existência porque ela não existe pra ninguém - e só se existe quando se existe pra alguém.
Todavia, este texto vai longe de buscar holofotes e pregar exortações, como se o que lhes fala fosse o exemplo da caridade e amor com próximo. O autor mesmo, quando viu Sueli chegar e começar a conversar com ele, já se firmou no propósito de não lhe dar dinheiro - um grande ato de caridade, desestimular sua busca pela droga. Ao fim, Sueli não pediu dinheiro. Falou muito, falou coisas desconexas, mas não pediu. E o autor não soube o que fazer. Já havia preparado a negação firme da esmola e ensaiado um "vai com Deus". Mas Sueli só conversou, e o autor não quis conversá-la. Julgou Sueli desde o começo, e talvez ainda julga.
Como exercitar os elevadíssimos ideais de amor ao próximo, a tal caridade - mote principal da maior religião ocidental - sendo tão humanamente incapaz? O trabalho é longo e árduo.
O ônibus chegou, despejou um bafo quente de gases da queima de óleo diesel. O autor subiu pela frente e pagou. Sueli entrou pela porta de trás e gritou com o cobrador.
E ela não pediu dinheiro.