
microconto é uma formas ultracontemporaneas para mostrar que no intervalo entre 0 e 1 a duração sempre será subjetiva. e rodrigo k. bem sabe disso e por isso nos aponta as rugosidades da existência em textos cujo estranhamento não está apenas na concisão.
prelúdios para a loucura: microcontos de rodrigo kmiecik
I
— Pode me ajudar com as malas?
O velho senhor aceitou de prontidão.
Lembrava-se dela há alguns meses, quando ainda estava grávida. Tomou na mão esquerda uma bolsa pequena, que estava muito pesada. Pensou em perguntar sobre o bebê, mas desistiu quando viu o sangue pingando.
II
Despertou quando ele abriu a porta do quarto. Estava parado, com um olhar fixo e colérico. A mulher tentou ver que horas eram, ainda sonolenta, mas percebeu que havia esquecido o celular na sala. Notou uma faca que brilhava na mão direita; no rosto, brilhava uma lágrima. Nunca tinha visto ele chorar.
— Você prometeu que nunca ia me trair de novo.
Ela não foi nem capaz de gritar.
III
Descobriu que tinha tripofobia quando o ser com mil olhos apareceu em seu quarto. Os guinchos a fizeram estremecer; ficou enjoada quando as patas membranosas envolveram seu corpo desnudo. Então viajou pelo espaço, entre as estrelas e cometas brilhantes. Sentia muito frio. Mas pelo menos não era mais uma órfã: seu pai havia voltado para buscá-la.
V
— Prometo que vou tomar os remédios – disse, no hospital, depois de mais um surto depressivo. Naquele dia, os pais nem dormiram de preocupação.
Pareceu melhorar depois de um tempo.
Mas numa noite quente, encontraram-no enforcado no guarda-roupa. A cartela de antidepressivos permanecia intocada.
IV
Ainda se lembrava dela rindo. Nem ele esperava gozar tão depressa. Agora, sentia a mesma ansiedade que precedia as transas; mas, dessa vez, ela não riria dele. Suspirou profundamente e, abrindo o zíper da calça, trancou a porta do necrotério.
VI
Um monge vivia rezando a Deus. Nos corredores ou nas bibliotecas da abadia, ele ansiava todos os dias. "Apareça, senhor todo poderoso, deixe-me ver tua face". Depois de um sonho, ele nunca mais clamou ou rezou por nada. Nunca mais pôde esquecer-se dos tentáculos e das gigantescas asas; das garras que repousavam sobre um monólito negro.
VII
Matou o primeiro gato quando tinha onze anos. Com um rastelo, ele se lembrava. Quando chegou aos quinze, já tinha perdido a conta de quantos mandara ao inferno. Detestava aqueles bichos. Certa noite, quando procurava mais uma vítima, topou com um estuprador. Mas ao invés de gemer, o homem barbudo e fedido soltava miados graves. E como nos gatos, o pênis era todo espinhoso.
VIII
Era um frustrado em anatomia. Mas sabia contar. E contava: vinte e duas, vinte e três, vinte e quatro!
— Um ser humano tem vinte e quatro costelas.
Deu um tapinha no rosto dela. E na cama, sobre os lençóis sujos de sangue, a mulher com o tórax aberto deu um último gemido antes de morrer.
IX
“Sempre obedeça aos mais velhos”, dizia a mãe. Era muito religiosa. Também dizia que somente os padres sabiam como absolver os pecadores. Por isso a criança apenas chorou, sem contestar, quando um velho de batina a obrigou a chupar seu pênis sujo, ainda mole, na sala de confissões de uma igreja.
X
Nunca tivera pesadelos com o emprego. Dava graças a Deus por isso. Nem sequer gostava de trabalhar num frigorífico. Mas numa noite sonhou que os porcos, em pé sobre as patas traseiras, vestiam aventais e cortavam os pescoços de gente. Sem pudor algum. Estremeceu quando os animais o olharam, aproximando-se aos poucos. Foi posto junto aos outros seres humanos na fila de abate. E não acordou.
XI
“Tenho muito medo de morrer”, pensava um camponês todos os dias ao acordar. Pensava nisso até fechar os olhos para dormir. E também sonhava com a morte. Certa vez sentiu uma coceira insuportável nas costas; não podia ver o que era, apenas sentia. Com o tempo, a coceira deu lugar a uma dor terrível; às vezes arrancava larvas dos ferimentos nas costas. “Tenho muito medo de morrer”, pensava. Mal sabia que já estava apodrecendo.
XIII
O feiticeiro era convicto de que não temos alma. Somos apenas matéria. Ele desprezava a humanidade. Depois de ler o Livro de Eibon, o feiticeiro decidiu dar vida a um golem. Trabalhou na sua criação por meses, e demorou tanto pois o fazia a imagem e semelhança de seu criador. O feiticeiro sentia-se um Deus, pois dava forma e vida para seu filho. Numa noite de Natal, o golem abriu os olhos. Em deleite, o mago ouvia aquele coração bater retumbante, e nem se deu conta quando o seu próprio parou, trespassado por uma espada, jorrando sangue. O golem sequer titubeou. Afinal, não tinha alma. Era apenas matéria. E desprezava a humanidade.
XVI
Desde aquela noite, ela tinha uma aversão sobrenatural a caprinos. O humor estava no fato de que o pai tinha uma fazenda de cabras e ovelhas. Nunca mais foi até lá. Ninguém entendia seu medo, porque só ela podia entender. Afinal, era ela quem havia visto o grande deus Pã.
XII
Descobriu o testamento da velha por acaso, limpando as gavetas de uma cômoda.
— Quebre o pescoço – ordenou a babá. – Isso é normal no sítio. Tem de aprender.
A criança obedeceu e ouviu o som; sentiu um arrepio. Tinha matado o frango para o almoço. Às vezes a ama a ensinava matar gansos, patos e até um cabrito. Lembrava de ter matado um porco também. E um novilho. Até o dia em que a menina estrangulou a própria avó, cuja fortuna, por falta de parentes próximos e pelas mãos sujas de sangue da neta, foi destinada à babá.
XIV
Acabara de poupar a vida de um soldado inimigo. Vendo a tíbia exposta, não teve coragem de pôr uma bala na cabeça do moribundo. Pensou que podia haver piedade na guerra. Caminhou para se afastar quando ouviu o clique de uma mina sob seus pés. Morreu sem saber que poupara o engenheiro de bombas adversário.
XV
Ninguém havia notado a presença dele na escola. Não aparecia por lá havia anos, desde que desistiu de estudar por ser espancado todos os dias nos banheiros. Os valentões, devido inúmeras reprovações, ainda sentavam-se nas mesmas carteiras. Pôde encará-los brevemente. O sino para o intervalo soou meio abafado naquele dia, como se estivesse enroscado. Ele conseguiu ver, já bem longe, o telhado e as paredes indo pelos ares com a explosão.